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Previdência: planos antigos geram ações naJustiça

previdência - 09/06/2021

Uma brincadeira bem disseminada no mercado financeiro até pouco tempo atrás é a de que os gestores de fundos de previdência privada poderiam aplicar todo o dinheiro dos segurados em títulos públicos em janeiro e curtir uma praia o resto do ano. Afinal, de 1996 até 2012 só havíamos tido uma taxa básica de juros de dois dígitos, mais do que suficiente para garantir um rendimento de quase 1% ao mês em aplicações de baixíssimo risco, como o título público Tesouro Selic (também chamado de LFT).
Ainda que entre março de 2012 e janeiro de 2014 a Selic tenha experimentado o ‘um dígito’, foram só nos últimos quatro anos, a partir de julho de 2017, que a taxa básica de juros se firmou abaixo de 10% e passou a tirar o sono desses gestores. Para quem estava acostumado a ter 1% ao mês de retorno, se acostumar com 0,15% não foi fácil.

A nova conjuntura econômica, piorada com a crise da covid-19, levou os gestores de previdência a, obrigatoriamente, diversificar e aumentar o risco das carteiras (dentro de seus limites) para cumprir suas metas atuariais. Mesmo assim, nem todos estão conseguindo cumpri-las, especialmente de planos de previdência mais antigos, cuja rentabilidade prometida é joia rara e valiosa hoje em dia.
Para evitar um prejuízo homérico, seguradoras começaram a questionar as metas propostas e pedir repactuações de contratos a clientes de contratos mais antigos. O problema é fazer o cliente, que está acostumado com bons rendimentos, aceitar de boa vontade e pela empatia a revisão de termos que pioram – e muito – seu lucro. O que temos começado a ver é o início de algo que pode se tornar ainda mais problemático e que já leva seguradoras e segurados à justiça.

O Valor Investe teve acesso a um caso da seguradora Evidence, que assumiu a gestão dos planos de previdência privada da Santander Seguradora em 2015 e continua sendo controlada pelo grupo espanhol. Nele, um escritório de advocacia terceirizado faz uma intimação em que pede ao juiz a repactuação compulsória do plano de previdência do tipo FGB (Fundo Gerador de Benefício) do segurado ou seu resgate ou a migração para outro plano, todas opções menos rentáveis ao cliente.

O motivo do pedido de mudança fica bem claro quando vemos o retorno prometido pelo plano: IGP-M + 6% ao ano. Considerando que em 12 meses até abril de 2021 o IGP-M registrou uma extraordinária alta de 32,02%, nestes termos, o plano teria que ter entregue aos clientes um retorno de no mínimo 38%. Como base de comparação, a Selic no mesmo período foi de 2,4%, em média.

Olhando para a janela de 12 meses, foram poucos os produtos financeiros que conseguiram dar ao investidor algo próximo a isso e todos que bateram esse rendimento, são mais arriscados, como o próprio Ibovespa, principal índice do mercado de ações, que rendeu justamente 38,3% em um ano até abril.

É de se esperar que qualquer gestor de recursos – e os executivos da casa em que ele trabalha – se descabelem ao ter que pagar tal rendimento em um cenário desafiador como vivemos. E é justamente essa justificativa – mudança do cenário, baixa drástica de juros, e impossibilidade de dar o retorno prometido – que o advogado que assina a intimação do caso em que o Valor Investe teve acesso se baseia.

Outro argumento do caso é de que a tábua de expectativa de vida da população usada nos cálculos desses planos (a AT-1949) não está atualizada. Inclusive, o próprio Santander deixa isso claro a questão da tábua em sua resposta ao Valor Investe, quando questionado sobre o caso do produto FGB: “O produto FGB possui tábua de expectativa de vida desatualizada e juros fixos completamente incompatíveis com a realidade, o que acarreta a inviabilidade do fundo, uma vez que inexistem ativos disponíveis no mercado que garantam o aumento das obrigações.”

Quando questionado pelo Valor Investe, dado que alegam que “os juros fixos do produto são incompatíveis com a realidade” porque, então, os juros cobrados de clientes pessoa física em empréstimos de curto prazo são compatíveis com realidade, dado que são superiores aos previstos para remuneração desses planos de previdência, o banco Santander não quis comentar.

A instituição também não quis responder se esse argumento de incompatibilidade e necessidade de repactuação pode ser usado pelos clientes para renegociação de suas dívidas com o banco.
Expectativa de vida

A tábua atuarial foi criada com o objetivo de calcular a expectativa de vida média do investidor nos casos de renda vitalícia e é usada em planos de previdência. De fato, houve uma atualização da expectativa ao longo dos anos, com a publicação de outras tábuas, e só tivemos pela primeira vez uma brasileira mesmo (a BR-EMS) em 2010 – até então, as seguradoras se baseavam em americanas.

Se antes previa-se que o indivíduo viveria no máximo até 109 anos, agora esse limite está em 120 anos. Com a expectativa de vida média considerada nos cálculos aconteceu a mesma coisa: passou de cerca de 80 anos para 88 anos.

“São cinco a sete anos a mais para a seguradora pagar em benefícios ao cliente e as pessoas estão vivendo muito mais, com avanço da medicina e hábitos de vida mais saudáveis. Nenhuma seguradora hoje vai oferecer um plano em que ela não esteja totalmente protegida”, comenta Hugo Elsenbusch, especialista em previdência privada e fundador da empresa de planejamento financeiro Multixplique.

Um terceiro argumento é a necessidade de fazer um aporte adicional para cumprir o que dita o regulamento. “Em razão do cenário exposto e a criação de exigências de provisão pelo Órgão Regulador, a parte autora, com objetivo de se manter operando, restou obrigada a fazer aportes suplementares e constituir provisões técnicas no plano FGB que, frisa-se, não eram exigidas na época da contratação”, diz o escritório de advocacia no processo.

Procurada, a FenaPrevi (Federação Nacional de Previdência Privada e Vida) não quis entrar na discussão: “A Fenaprevi e suas associadas seguem estritamente as normas e as diretrizes do órgão supervisor do setor de seguros, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP. Qualquer medida ou decisão diferente desse entendimento, é de inteira responsabilidade da respectiva entidade seguradora”, disse em nota enviada ao Valor Investe depois de ser questionada sobre a situação das seguradoras e a judicialização dos planos de previdência mais antigos.
Contrapontos

O grande ponto de atenção do lado das seguradoras é que a maioria desses planos, constituídos na década de 1990 e início dos anos 2000, promete rentabilidades muito além do que o cenário atual pode oferecer sem grandes riscos, e benefício pré-determinado. Hoje não existem mais produtos à venda com as condições dos FGBs – o que predomina são os planos cujos benefícios na hora do usufruto são variáveis e que usa tábua atuarial mais recente.

Em um primeiro olhar, parecem louváveis os argumentos da Evidence, que são compartilhados por outras seguradoras. Mas quando algumas questões são postas na mesa, a argumentação se engasga.

A primeira questão é a própria natureza de um plano de previdência, que jamais será vendido por uma seguradora com a intenção de que o cliente fique pouco tempo. Pelo contrário, a característica que diferencia um produto previdenciário de outro investimento qualquer é o alvo central no longo-prazo.

Diante disso, é esperado que se pergunte: por que a empresa não previu mudanças drásticas de cenário macroeconômico antes de firmar um contrato de longo prazo? E como uma seguradora não pressupõe em seus diversos cálculos de previsão econômica que a expectativa de vida da população iria aumentar?

“Eles alegam a questão da expectativa de vida das pessoas, que aumentou. Esse é um ponto antigo e as seguradoras têm a área específica de cálculos atuariais de perspectivas de longo prazo. Fica parecendo que foram ingênuos em achar que a lucratividade fosse linda e o Brasil alvo de juros altos e inflação acelerada para sempre. As seguradoras têm justamente a configuração de seguradora pelo preparo atuarial de longo prazo e tem que ter. Não é como seguro de automóvel que dura um ano”, pontua a advogada Christiane Furk, especializada em seguros e que defende consumidores.

Além disso, há a questão dos novos termos propostos. No caso citado acima, de IGP-M + 6% ao ano, é oferecida uma repactuação ao cliente para IPCA + 0% ao ano. Ou seja, considerando que o IPCA registrou 6,76% em 12 meses até abril de 2021, o beneficiário teria deixado de ganhar 31,3 pontos percentuais no último ano (diferença de rentabilidade do que ganhou e dos novos termos propostos).

A Susep (Superintendência de Seguros Privados) é o órgão que regula o mercado de previdência privada hoje no Brasil. Em artigos publicados no site da Susep em 15 de julho de 2020 e em 27 de janeiro de 2021, o órgão fala especificamente sobre o caso da Evidence, que chegou ao seu conhecimento pelo número expressivo de reclamações de clientes.

Desde o final de 2019, os segurados dos planos de previdência do tipo FGB receberam cartas da instituição financeira, informando sobre a descontinuidade de seus contratos e impondo o resgate ou a portabilidade dos recursos acumulados. O entendimento foi de que a Evidence só poderia obrigar a repactuação dos termos se isso constasse em contrato. Se não, caberia acordo com cada um dos clientes.

“Após a análise do recurso, em reunião ordinária do Conselho Diretor realizada em 02/07/2020, o posicionamento da autarquia (em decisão unânime) foi por manter a suspensão permanente do plano de ação de mitigação de riscos e saneamento da carteira da empresa, reconhecendo ser cabível a rescisão contratual por parte da empresa apenas nos casos em que haja expressa previsão contratual. Nesses casos, cabe à empresa comprovar documentalmente em eventual comunicado aos seus participantes se eles se enquadram em alguma das hipóteses admitidas para resilição contratual. A empresa não deve, de forma alguma, induzir os participantes a interpretações equivocadas”, diz o artigo de julho de 2020.
Em 27 de janeiro, a Susep possivelmente motivada por mais reclamações de consumidores, voltou a se manifestar sobre o tema:

“A Susep reitera as informações constantes da notícia veiculada em 15 de julho de 2020. A rescisão contratual por parte da empresa somente é cabível nos casos em que houver expressa previsão contratual. Nesses casos, cabe à empresa comprovar documentalmente em eventual comunicado aos seus participantes se eles se enquadram em alguma das hipóteses admitidas para resilição contratual. A empresa não deve, de forma alguma, induzir os participantes a interpretações equivocadas.”

Ao que tudo indica, os casos em que a Evidence não conseguiu repactuar individualmente com clientes foram levados ao Judiciário, como o do segurado que citamos no início do texto, que firmou contrato em 1999 e que em 2022 começa a receber o benefício (período de concessão ou usufruto).

Em resposta ao Valor Investe, o Santander, controlador da Evidence, diz que o produto FGB não é comercializado pela Evidence há mais de 20 anos e está em processo de ‘run off’ (diminuição natural). “A Evidence cumpre rigorosamente todas as previsões contratuais e está conduzindo o processo de repactuação dos contratos com anuência dos clientes e total transparência perante o regulador”, completa.

Problema generalizado

A Evidence é uma das seguradoras mais ativas na tentativa de rever termos de contratos de clientes. Mas a preocupação com o descompasso de contas entre o prometido e o realizado nesta nova conjuntura não é algo exclusivo dela.

Segundo o advogado Cleiton Eduardo Pereira, que atua em um caso contra a Evidence, todos os participantes do fundo que não repactuaram estão na Justiça, seja porque a seguradora entrou com processo ou porque entraram antes para garantir seu direito de receber o acordado no contrato. Disse ainda que em São Paulo há 284 ações em andamento com o tema repactuação de planos de previdência privada.
““A suposta repactuação proposta pela Evidence é abusiva, pois viola o direito do consumidor, visto que, o contrato existente entre as partes é de adesão, isto é, as cláusulas e condições do contrato foram escritas unilateralmente pela Evidence, sem qualquer participação do consumidor, cabendo a este último apenas “aderir” ao plano escolhido, assim, pretender mudar as regras do jogo no final do campeonato é kafkiano, surreal e injusto”, explica Pereira.

Não há mais planos do tipo FGB que esteja aceitando novos entrantes. BrasilPrev, Icatu, Mapfre e Porto Seguro são algumas que já tentam há algum tempo diminuir esses planos e migrar seus participantes.

Elsenbusch, da Multixplique, é um dos beneficiários de um FGB da Brasilprev que não conseguiu mais aportar recursos em seu plano e está avaliando, junto com outros colegas que também são clientes do mesmo produto, se entram na Justiça para garantir seu direito.

“Na visão da seguradora, se deixar a porteira aberta, o risco aumenta demais. Eles dificultam ao máximo a vida dos clientes para eles desistirem. O problema é que as seguradoras venderam produtos inadequados. Mas se tiver no contrato, precisa cumprir”, afirma Elsenbusch. “Eu tento mostrar às pessoas que a previdência privada é algo seguro, previsível, que permite que as pessoas consigam se programar para ter uma vida tranquila, e aí uma quebra unilateral de contrato prejudica toda essa imagem positiva do segmento”, completa.

Na terça, dia 25 de maio, contudo, um caso sobre o assunto foi julgado e o resultado foi à favor do cliente de plano de previdência antigo. O juiz de Direito Fausto Dalmaschio Ferreira, da 11ª vara Cível do Foro Regional II – Santo Amaro/SP deferiu liminar para permitir a um cliente de plano de previdência privada que realize aportes esporádicos, conforme previsto em contrato.

Procurada, a BrasilPrev, que não é companhia aberta, disse que “em atendimento à regulação da CVM”, encontra-se em período de silêncio, “e portanto, impedida de responder no momento”. A Icatu não quis comentar e a Mapfre não respondeu ao pedido de entrevista. A Porto Seguro foi a única seguradora que respondeu ao Valor Investe:

“Temos buscado reformular o marco regulatório de modo a permitir capitais diferenciados de acordo com o tamanho da empresa (norma de segmentação) e criamos também o sandbox onde o capital requerido para novas empresas que entrarem no mercado pode ser diferente, desde que a empresa cumpra determinados requisitos. Com o objetivo de reduzir o custo de captação de recursos por parte das seguradoras, foram editadas as normas de dívida subordinada e ILS”, respondeu a Susep ao Valor Investe.

A falta de flexibilidade para reaver ou atualizar condições de planos é um dos questionamentos da indústria.

O órgão também reiterou que não há solicitação de revisão de metas atuariais por parte das seguradoras. “As seguradoras podem se utilizar de normas como ILS e dívida subordinada para reduzir o seu custo de capital”, aponta.

E frisa que, do ponto de vista do segurado, ele não é obrigado a migrar de um plano para outro se não existir previsão no regulamento e que tem agido preventivamente junto às seguradoras por meio de comunicados divulgados no site da Susep, informando que as alterações que não estiverem previstas no contrato só podem ser feitas mediante acordo com o segurado.

“Os contratos só podem ser alterados se existir previsão legal para tal. Qualquer alteração que não esteja prevista, só pode ser feita em comum acordo entre as partes.”

Fonte: Valor investe